Hoje é quarta-feira de cinzas e acordei com essa reflexão na minha cabeça: afinal, o carnaval é a festa da carne ou uma grande celebração da nossa alma e essência?
Nesse ano em que celebramos os 40 anos da Axé Music, na Bahia, o cacique Carlinhos Brown levantou essa bola, durante a passagem de seu trio elétrico. Com a sabedoria de quem vivencia o sagrado e o profano, Brown afirmou que o carnaval é uma grande manifestação espiritual do nosso povo. “Axé nasceu para romper uma barreira de pensamento europeu que diz que o Carnaval é pela carne”, disse ele.
A visão tradicional do Carnaval sempre foi a de uma festa ligada ao corpo, à carne, ao prazer imediato e à indulgência. Para muitos, é sinônimo de excessos, de bebidas, de liberdade sem limites. Essa visão foi moldada ao longo de décadas, muitas vezes ignorando as profundas raízes culturais e espirituais que essa festa carrega. O Carnaval, em sua essência, vai muito além disso.
Como baiana, cresci respirando o Carnaval de Salvador. Passei anos trabalhando nos bastidores da festa, em camarotes e blocos, e, por muito tempo, vi a euforia dos foliões sob uma ótica mais racional. Ao longo dos anos, fui aprendendo a ver essa festa de forma mais profunda. Hoje, vejo que o Carnaval vai muito além do corpo. É uma celebração de nossa essência, de nossa alegria mais pura.
O mito dos excessos
A ideia de que precisamos estar imersas nos excessos para aproveitar a festa é um mito. Podemos viver o Carnaval de forma presente e saudável, exercitando nosso prazer para muito além do sexo, seja dançando, nos emocionando com a música ou apenas conectando-nos com as pessoas.
Por isso, digo que essa visão carrega um grande equívoco! O Carnaval não é a “festa da carne” e não precisa ser encarado como uma orgia de excessos.Na verdade, ele é um reflexo profundo da nossa cultura, da nossa alma e da nossa necessidade de conexão verdadeira com a vida.
Muitos foliões vivem o Carnaval de forma sóbria, dançando e se emocionando com a música e com os outros, sem a necessidade de entrar numa energia descontrolada para se divertir. É importante que possamos atualizar o olhar para essa festa, entendendo que ela não se limita aos estereótipos, mas é uma oportunidade de reconectar com o prazer genuíno de viver a vida, sem culpa ou julgamento.
O Carnaval é uma celebração da alegria simples e da união do povo. Especialmente em Salvador, é uma festa repleta de ritmos, cores, danças e, acima de tudo, de energia positiva e outros elementos que estão ligados à nossa alma, à nossa fé, à tradição. Ele celebra a liberdade de ser quem somos, sem as limitações impostas pela sociedade.
5 experiência que mostram a espiritualidade no carnaval de Salvador
1. Mulheres Sacramento no Carnaval de Maragogipe
O Carnaval de Maragogipe é uma das manifestações culturais mais ricas do Recôncavo Baiano, conhecido por suas tradições e, principalmente, pelo seu famoso Carnaval das Máscaras ou Carnaval dos Mascarados. Esta festa, que existe há mais de 100 anos, é um marco na história da cidade e carrega em seu cerne muito mais do que apenas a folia.
Para as Mulheres Sacramento, o Carnaval de Maragogipe é uma celebração de amor, história e espiritualidade, que honra os legados de Umbelino e Benita, os patriarcas da família. Desde 2017, as mulheres da família Sacramento se reúnem para criar o bloco “Mulheres Sacramento e Agregadas”, uma homenagem aos seus pais e avós, que sempre mantiveram suas portas abertas para todos.
O nome “agregadas” representa exatamente essa filosofia de vida que Umbelino e Benita praticavam: acolher a todos com amor e respeito, independentemente de sua origem, credo. Eu tenho o privilégio de fazer parte das agregadas há 4 anos e posso dizer que a experiência espiritual dessa festa é enorme, não apenas pela história que o bloco carrega, mas pela festa em si, que é carregada de história.
Participar desse Carnaval é como viajar no tempo, resgatar memórias e conectar-se com algo profundo, que vai além da festa. A energia que emana das ruas de Maragogipe é única, e a sensação de estar reunida com outras mulheres, todas unidas pela mesma causa e história, cria uma conexão emocional imensa. É uma verdadeira celebração do legado de Umbelino e Benita, cujos ensinamentos de acolhimento, generosidade e união continuam vivos a cada desfile.
O Carnaval de Maragogipe, em si, é muito mais do que uma festa popular. Ele é uma tradição que remonta ao passado e tem como característica a utilização de máscaras e fantasias, práticas que se tornaram símbolos do evento. É no coração dessa tradição que as Mulheres Sacramento se inserem, com seus trajes coloridos e suas máscaras, levando para as ruas de Maragogipe o espírito de união e acolhimento que sempre foi marca registrada da família. O Carnaval das Máscaras é uma manifestação cultural que instiga reflexão sobre os valores do passado e como essas tradições se mantêm vivas no presente.
Maragogipe é uma das jóias da bacia do Rio Paraguaçu, um lugar de beleza natural indescritível e de uma rica herança cultural. Ao caminhar pelas ruas da cidade durante o Carnaval, é possível sentir a história pulsando em cada esquina, nas conversas das pessoas, nas fantasias, na arquitetura e, principalmente, nos passos das mulheres que fazem parte desse movimento.
Para nós, as agregadas, a experiência de estar no Carnaval de Maragogipe é um mergulho na história, na tradição e na espiritualidade. O simples fato de participar dessa festa nos conecta com algo maior, com um propósito que vai além da diversão. É uma celebração do amor incondicional, da aceitação de todos e da importância da união familiar.
2. Ritual da Saída do Bloco Afro Ilê Aiyê
A cerimônia de saída do Ilê Aiyê, no sábado de Carnaval, é um dos momentos mais emblemáticos e significativos do Carnaval de Salvador. Eu amo acompanhar. Não se trata apenas de um desfile, mas de um ato profundamente espiritual, que reverencia os orixás, a ancestralidade e a cultura afro-brasileira. Sob a bênção de Hildelice Benta dos Santos, ialorixá do Terreiro Ilê Axé Jitolu, o Ilê Aiyê inicia sua jornada com um ritual carregado de simbolismo, onde o sagrado e o profano se entrelaçam em uma demonstração de resistência, fé e identidade.
A saída do Ilê Aiyê começa com a presença dos atabaques e tambores, cujos sons ecoam pelas ruas e invocam as energias ancestrais. A música não é apenas uma forma de entretenimento; ela é a manifestação sonora da espiritualidade do bloco, que reverencia os orixás. Assistir pessoalmente e esse momento é uma das grandes emoções do Carnaval baiano.
Durante o cortejo, os cânticos que acompanham o ritmo dos tambores são repletos de louvores, feitos com devoção e respeito aos seres divinos que guiam a comunidade. Este momento não é apenas para quem está no desfile, mas é um convite àqueles que acompanham o cortejo a se conectarem com a força e a energia do povo negro, que ao longo de sua história sempre buscou resistência e afirmação.
Durante o ritual, são feitas oferendas de milho, pipoca e pó de pemba, simbolizando proteção e boas energias para a jornada do bloco. Além disso, as pombas brancas, soltas em homenagem a Oxalá, tornam o momento ainda mais espiritual, reforçando o vínculo com o sagrado. Mais do que um desfile comum, a saída do Ilê Aiyê representa um ato de resistência cultural e celebração da herança afro-brasileira, atraindo multidões para o bairro da Liberdade, com grande interesse de artistas e políticos.
Depois do ritual no Curuzu, o trio do Ilê Aiyê segue para o Plano Inclinado da Liberdade, onde a festa continua. Após uma breve pausa, os associados se reencontram horas depois no Corredor da Vitória, iniciando o primeiro desfile oficial do bloco no tradicional circuito Osmar, marcando sua presença no Carnaval de Salvador.
3. O Fenômeno BaianaSystem
Quando falamos sobre o fenômeno BaianaSystem, não estamos apenas descrevendo uma banda ou um estilo musical. Estamos falando de uma verdadeira revolução cultural que transforma cada apresentação em uma experiência única e inesquecível. Para muitas pessoas, estar na pipoca do Baiana é viver um êxtase que mistura sons, sentimentos e movimentos, algo que não pode ser descrito, apenas vivido. E esse fenômeno vai muito além da música, conectando as pessoas a suas raízes, à história e à própria essência da Bahia.
O BaianaSystem é um exemplo claro de como a música pode ser uma ferramenta poderosa para promover a conexão e a transformação. As letras politizadas e a mistura de ritmos envolvem o público de forma visceral, enquanto o chamado da dança é inegável. Não importa a idade, o gênero ou o estado emocional do ouvinte, os corpos respondem ao ritmo de forma natural, sem a necessidade de coreografias ensaiadas. Isso é o que torna o BaianaSystem tão especial e, ao mesmo tempo, difícil de explicar para quem nunca experimentou ao vivo.
Aos 39 anos, a musicista e professora de yoga Priscila Rios, que vive na Austrália, foi uma das muitas pessoas que vivenciaram essa experiência. Ela conhecia o trabalho do BaianaSystem, mas nunca havia estado em uma apresentação ao vivo até o Carnaval deste ano. Quando se jogou na pipoca da Baiana, não conseguiu encontrar palavras para descrever o impacto de estar ali, sentindo a música e a energia de maneira tão intensa. A experiência foi além da música: foi uma verdadeira imersão na cultura e na emoção da Bahia.
4. Tapete Branco do Afoxé Filhos de Gandhy Espalha Tradição e Fé
Durante o Carnaval de Salvador, um espetáculo de fé, tradição e alegria toma conta do Centro Histórico da cidade: o Afoxé Filhos de Gandhy. O tapete branco do Afoxé Filhos de Gandhy espalha tradição e fé por onde passa, criando uma onda de serenidade e união entre todos que acompanham o cortejo. Sua tradição, que mistura cânticos sagrados, rituais e muita devoção, se torna um dos momentos mais emocionantes da festa, unindo gerações e celebrando a paz.
Com sua cor branca imponente e azul vibrante, o Afoxé Filhos de Gandhy reverencia a paz, a harmonia e a conexão com os ancestrais, elementos fundamentais para quem busca viver com mais equilíbrio e significado. Ao acompanhar esse cortejo, sentimos uma energia renovadora, que nos transporta para um lugar de respeito e devoção, mas também de alegria e celebração.
O Afoxé Filhos de Gandhy é uma forma de reconectar com a espiritualidade e com suas raízes. É uma oportunidade de vivenciar o carnaval de uma forma mais profunda, longe da superficialidade da festa, e mais perto do que realmente importa: a conexão com a cultura, a fé e a paz interior.
O Significado do Tapete Branco: Devoção, Fé e Tradição
O tapete branco que o Afoxé Filhos de Gandhy espalha nas ruas de Salvador não é apenas um símbolo de sua tradição. Ele carrega consigo uma mensagem de devoção, fé e harmonia. A cor branca, associada a Oxalá, e o azul, símbolo de Ogum, representam, respectivamente, a paz e a força protetora. Essa combinação de cores se torna um lembrete da importância de manter a fé firme em tempos de desafios e incertezas.
Cada passo dado por aqueles que seguem o cortejo é uma prece, uma busca por bênçãos para que o carnaval transcorra sem violência, como os integrantes do bloco costumam desejar. O ritual começa com o padê, uma cerimônia dedicada a Exu, e a soltura das pombas brancas, que simbolizam o desejo de paz para todos. Os cânticos sagrados, entoados com alegria e respeito, envolvem os participantes em um clima de devoção pura, como se a música fosse uma oração viva.
5. Pipoca dos Trios Independentes no Carnaval de Salvador
A emoção de estar na pipoca dos trios independentes no Carnaval de Salvador é algo que vai muito além da alegria de dançar ao som das músicas que amamos. É um momento de total entrega, onde o corpo se solta, a mente se liberta e a energia da rua se mistura com as nossas emoções mais profundas. Não há barreiras, não há cordas separando o folião do trio, apenas a verdadeira essência da festa, que foi criada pelos amigos Dodô e Osmar, os inventores do trio elétrico.
Estar ali, no meio da pipoca, em pleno Carnaval de Salvador, é como vivenciar um sonho coletivo. Cada acorde, cada batida, cada grito de alegria que ecoa pela avenida, nos conecta com a cultura, a história e a alegria genuína da festa de rua. É uma sensação única, onde o tempo parece parar e a gente se sente parte de algo maior. A pipoca dos trios independentes é, sem dúvida, uma das maiores expressões de como o Carnaval pode ser vivido com autenticidade e alegria.
A Magia e a Emoção do Carnaval de Rua
O que torna a emoção de estar na pipoca dos trios independentes tão especial? A resposta está na liberdade. Ao contrário dos blocos tradicionais, onde o folião precisa ficar atrás das cordas, os trios independentes oferecem uma experiência mais solta, sem barreiras físicas entre a música e o público. Isso cria uma interação verdadeira, onde o som da bateria e da guitarra parece se misturar com as vozes do público, tornando tudo mais vibrante.
Estar na pipoca é resgatar a essência do Carnaval de rua, uma festa onde a principal preocupação é se divertir, sem se preocupar com status ou divisão entre os diferentes tipos de foliões. Aqui, todos são iguais, todos estão ali pela mesma razão: a alegria de viver o momento.
Festa da reconexão
O Carnaval de Salvador, com sua energia contagiante e suas manifestações culturais profundamente enraizadas na religiosidade afro-brasileira, nos oferece uma oportunidade única de reconexão com nossa espiritualidade. Em meio aos batuques dos blocos, aos cânticos dos afoxés e à vibração dos trios, há um convite claro para transcendermos as barreiras do julgamento social e nos entregarmos a um momento de autenticidade, liberdade e prazer genuíno.
Quando vemos o Carnaval não apenas como uma festa, mas como uma vivência espiritual, ele se torna um caminho de prazer, onde podemos nos reconectar com a alegria pura e o nosso eu mais profundo, sem as amarras da culpa ou os exageros do álcool ou sexo.
É essencial, especialmente para nós mulheres, que muitas vezes carregamos o peso de expectativas externas, perceber que o Carnaval de Salvador nos ensina sobre a importância de viver o presente com plenitude. Mais do que um período de festividades, ele é uma chance de libertar a alma, de celebrar a vida em sua forma mais verdadeira e espontânea. O Carnaval nos lembra que a felicidade e o prazer não precisam ser fontes de culpa, mas sim de celebração e renovação. Ao olhar para essa festa com os olhos da espiritualidade, encontramos um caminho para viver de forma mais leve e cheia de significado.
Agora, quero saber de você: como você enxerga o Carnaval? Já parou para refletir sobre o quanto ele pode ser mais do que uma “festa da carne”? Compartilhe sua visão.